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quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Máscara

Quem sou eu
Esta carcaça que desfila máscaras
E representa trechos de dramas
Por escrever?

Nos bastidores da vida
Finjo vivê-la
Invisto em papéis
Que não sou eu.

No meio do palco
Iluminada pelas luzes dormentes
Dos holofotes que me invadem
Sinto o susto
De não ser eu.

Aplausos
Não os quero
Sabem a lágrimas
E cheiram a janelas fechadas.
 
Quero a brisa da manhã
A asa da andorinha
Que voa para o Sul.

A arte da voluptuosidade

«[...] a voluptuosidade é uma arte - e, talvez a mais bela de todas. Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: Fremir em espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia - não será um prazer bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-los. E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos húmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de admiráveis não altearia!... Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os aromas, os narcóticos e as sedas - tantos sensualismos novos ainda não explorados... Como eu me orgulharia de ser esse artista!... [...].»

      SÁ-CARNEIRO, Mário de (2010) - "A Confissão de Lúcio", in Verso e Prosa, Lisboa, Assírio & Alvim, pp. 303-304.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cotovia

    Senta-te na relva molhada e conta-me os augúrios da manhã. Verbaliza as histórias da terra no canto daquela cotovia longínqua que traz novas do sul. Empresta-lhe a tua voz para que ela nos diga como fala o vento e de que conversam as árvores de folhagem sempre verde. Pede-lhe que nos descreva a tonalidade do orvalho e o cheiro dos primeiros raios de sol. Pergunta-lhe como é a poesia dos outros lugares da terra…



   Ouve-a e descobre mistérios nos olhos pequeninos com que abarca o mundo. Imagina-lhe a suavidade das asas que se não deixam tocar. Quero ser cotovia e em ti voar.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Segredo

Trazes a frescura da manhã
quando desces a estrada
para colher uma flor
Enroscas-te na memória de nós
e procuras o conselho
da nossa alegria
Conta-me o que viste
lá ao fundo
no jardim
e enfeita o meu colo
com gargalhadas de arco-íris
Espalha versos no regato
e liberta as promessas
que fizémos
Vê-as vogar
nas ondas do tempo
- o barco lento da saudade --
que nos embala
numa festa de estrelas

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

“Nas grades da Liberdade” – da escuridão à luz


    “Nas grades da liberdade”, a antologia poética de Ângelo Fitas inserida na obra Palavras Nossas (2011), distingue-se pela forma introspetiva e catártica com que o eu poético se refere a um percurso que o conduz da escuridão à luz, tornando-se esta dicotomia o seu aspeto mais flagrante. Como se fizesse uma pausa na sua existência, o eu detém-se no presente para repensar o passado e dar ao futuro um novo rumo: «[…] Nasceu a luz do dia e felizmente / Minha alma de novo se iluminou / Ao ver que a vida é bem diferente / Daquela que a noite me mostrou» (“De bar em bar”).

    Da poesia de Ângelo Fitas transparece um profundo sentimento humanitário, atento e denunciador das desigualdades sociais, assim como das limitações que a vivência da marginalidade acarreta para a fruição plena da vida em sociedade. Desta forma, podemos afirmar que o autor assume o compromisso heroico da luta pelo bem comum, numa voz clara, despida de retórica, sensível e direta. Ecoam nestes poemas vestígios da tradição poética portuguesa, em que é possível identificar o tom de denúncia e – por vezes – irónico de António Aleixo e a cadência camoniana da palavra amorosa.

    Uma experiência de leitura enriquecedora pela realidade que desnuda e pelas questões que desperta!



                                                                                                                                 Catarina Teixeira

Estrela



     Abre a janela e deixa entrar a poesia na tua vida em sufoco. Atreve-te a olhar o céu e a desejar aquela estrela que te ilumina e cativa. Confia nas asas com que foste fadada. Segue-a. Não a deixes fugir do teu sonho, se a escolheste para te banhar com o seu brilho.

    A tua estrela cheira a lavanda e a prados silvestres de perder de vista. Tem as cores do arco-íris e o canto da água a cair na terra seca. Ninguém a admira como tu. Desejar o alto não é pecado. É abrir os braços para a vida e recebê-la com um sorriso.



domingo, 20 de novembro de 2011

Babusku, o gato violinista

    Contaram-me que, na Pérsia, um país vasto e distante onde tudo parece retirado de uma história encantada, havia um gato que queria ser violinista. Isto não teria nada de excecional se o gato, que se chamava Babusku, não vivesse no palácio do Xá e não fosse um dos seus gatos de estimação. Ora, toda a gente sabe que um animal de estimação, ainda para mais de alguém tão poderoso e importante como o Xá da Pérsia, não deve nem tem que fazer mais nada na vida a não ser limitar-se a andar por ali, a receber miminhos, a comer iguarias, a dormir por onde lhe apraz… E acreditem que, para um gato persa, este tipo de vida já é agitada quanto baste! Mas Babusku não se contentava com uma existência ociosa nem era gato que desistisse facilmente dos seus sonhos, como veremos mais adiante.
    No palácio do Xá, vivia, desde há muitos séculos, uma família de lindos e aristocráticos gatos persas, cobiçados por toda a Europa por serem uma raridade. Esta raça de gatos distingue-se pelo seu macio e lustroso pêlo comprido, pelo nariz arrogantemente achatado, pelas minúsculas orelhas aveludadas, pelos atentos e líquidos olhos enormes… Além desta invulgar beleza, costumam possuir um carácter preguiçoso e independente. Ao longo da História da Pérsia, circularam pelo palácio, comeram à mesa da família real, partilharam os seus aposentos privados, ouviram conversas, assistiram a nascimentos, casamentos e mortes, tornaram-se confidentes nas horas de tristeza e festejaram as alegrias e vitórias… Enfim, pertenciam à vida da corte e nunca nenhum deles tinha posto isso em causa até à chegada do nosso protagonista.

    Babusku era um belíssimo exemplar da sua espécie: tinha o pêlo de um dourado com reflexos cobre, macio como algodão e lustroso como o cabelo de uma donzela; a sua cauda peluda abria-se como um leque e ondulava levemente quando ele caminhava; os olhos curiosos eram azulados e expressivos como os de um humano, e o focinho, de traços suaves e amistosos, dava-lhe uma expressão quase sorridente. Era meigo, fiel e afeiçoava-se às pessoas, ao contrário da maioria dos gatos que, apesar de gostarem dos donos, mantém sempre uma distância que lhes assegure a independência. Por ser tão especial, Babusku conquistou a preferência do Xá.
    Embora viver no palácio pudesse ser um sonho para qualquer gato, não era isso que Babusku queria para si. Na verdade, desde cedo percebeu que uma vida de ócio e abundância sem esforço não era suficiente para a sua felicidade. Sonhava atravessar as pesadas portas que o protegiam da rua e correr o mundo como os músicos e actores que, amiudadamente, visitavam e animavam o palácio. Mas não pensem que este desejo tinha fundamentos numa ingenuidade lírica! Não, era algo consciente, muito bem pensado e acalentado ao longo de uma vida. Ele sabia que a vida lá fora era um risco constante, pois costumava ouvir as conversas dos criados e dos guardas. Sabia que os camponeses passavam fome e grandes dificuldades, que existiam pessoas sem eira nem beira que mendigavam pão e água, que os homens se matavam uns aos outros por causa de algumas moedas ou de um pedaço de terra… Sim, Babusku sabia que o mundo exterior não era um conto de fadas, mas, mesmo assim, pretendia ir em frente com os seus intentos.  (...)

PALAVRAS NOSSAS - Antologia Poética

Catarina Teixeira integra esta antologia de 30 novos poetas portugueses... Uma primeira publicação com todo o seu simbolismo. Cheers!!

Palavras Nossas

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Amar é...

... libertar o nosso pássaro favorito, deixá-lo abrir as asas e voar.

sábado, 6 de agosto de 2011

Floresta

Querida Berta:

   De novo no refúgio do bosque. Aqui estou, na minha clareira preferida, na minha cabana de madeira, cheia de frestas por onde passam a luz, o vento, o sol e a chuva. Deixo a porta aberta e concentro-me na quietude deste recanto, para onde preciso de voltar sempre que a civilização me sufoca. Quem diz a civilização, diz os homens, as pessoas, o cansaço que se acumula na alma dia após dia, como uma muralha de lama que se sedimenta e nos limita o ser.

   Com as mãos quietas, sento-me virada para o exterior. Sinto o chão de terra batida, o colo da terra, o afago da natureza que me acolhe de braços abertos, curando-me as feridas do peito e a névoa que me oculta o brilho dos olhos. Ouço os pássaros e respiro a floresta - as árvores que me protegem, os chilreios que ecoam na profundeza da tranquilidade que me circunda. O tempo parou. Nem sei que horas são. Não quero saber que dia é. O tempo é uma invenção dos homens, uma convenção que nos distancia de nós próprios. Retorno aos primórdios da existência, deixo-me embalar pelo canto da terra, que me segreda sonhos tranquilos por debaixo da enxerga simples em que repouso quando a lua já vai alta.

   Não penso em nada, a não ser no aqui e no agora. Sinto-me segura, protegida como um velho druida que confia nas forças superiores do invisível. Nada de mal me pode acontecer aqui. Dirijo as minhas preces para os que caminham, apressados, sem destino.

  Uma cabana e uma floresta. Os elementos da natureza e o ser humano. Todos somos um. Não há necessidade de correr, há – sim – necessidade de parar. Parar, ouvir e sentir.

   Não temas por mim. Não me sinto só. Preciso da solidão para saber quem sou.
            Um beijo, Miranda.

              (* imagem: quadro de Nuno Rodrigues, disponível em: www.pinturascomaboca.blogspot.com)

domingo, 31 de julho de 2011

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Concha

   Afastou a cortina para o lado e fixou o olhar no passeio. Ninguém passava na rua. Pôs-se à escuta e pareceu-lhe ouvir passos. Escutou mais atentamente. Não escutava nada. Era imaginação. Imaginação ou desejo? Provavelmente, o desejo remanescente de esperar quem não volta, aquele último resquício de esperança que aquece um peito que já desacreditou no regresso.

   Suspirou e perdeu-se num pensamento que o guiou pelas ruas vazias de gente. Era Verão. A cidade estava ausente de si e não se ouviam os ruídos habituais. Nem passos apressados, nem lentos, nem solitários, nem acompanhados, nem cúmplices, nem distraídos. Nada. Rugia, ao longe, a buzina de um barco que anunciava a chegada à barra. Além daquele barco, ninguém mais parecia existir no mundo. Vinha-lhe à memória um verso distante de Vitorino Nemésio: «A minha casa é concha» - e era na sua concha que sentia a segurança que o contacto com o exterior ameaçava.

   Tomou uma resolução. Afastou-se da janela. Ia recolher-se na concha e esconder-se. Pegou na dor que lhe retraçara o peito e dobrou-a com cuidado, como uma manta que ainda poderia vir a ter utilidade. Fechou-a na última gaveta da cómoda, naquela onde guardava memórias e relíquias – alguns talismãs – que, ao longo do tempo, lhe foram sendo confiados – ou abandonados - por pessoas que passavam pela sua vida. Pessoas. Transeuntes. Meros passeantes que deixavam marcas sem saber. Meros peões descuidados que pisavam as flores com que, magnificamente, lhes atapetara o caminho de acesso à sua concha. Peões que nunca conhecerão o cheiro de uma flor ou o verdadeiro brilho que dela emana. Transeuntes iguais a tantos outros – de tão ocos – que perdem os contornos do rosto e se confundem com os objetos acumulados na gaveta do fundo. Não vale a pena ceder à dor latente que teima em se manifestar. Não vale a pena. Antes a solidão e o silêncio.

    Pegou no livro que tinha em cima da cama e virou a página. Como disse Saint-Exupéry, «Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção».

Cerejas

     O vento agita as árvores e de ti pendem beijos como cerejas. Colho-os um por um com cuidado, sem nunca deixar de sorrir. Cada beijo conta uma história. Chamo-lhes beijos sussurrantes, beijos que segredam em vozes que vêm de longe e evocam palavras sem tempo.


     Aprendo a conhecer-te por esses beijos que lembram cerejas. Polposos, sumarentos, com um travo de Primavera que permanece e me desliza pela alma, inundando-a de vermelho diluído em água cristalina. São beijos de vida, sopros divinos que semeiam sorrisos de criança em lábios murchos que desaprenderam a arte da alegria.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Guerreiro do reino das cores

Guerreiro do reino das cores, cresceu e fez-se rei. Trocou a espada pelo pincel e polvilhou de vida a natureza morta da existência. Pincelada daqui, pincelada dali, com a paixão de um mago conhecedor das leis do universo, fez renascer as tonalidades de tudo quanto existe. O vermelho das flores reergueu-se da palidez da morte e as árvores ondularam com a brisa delicada do pincel. O mar agitado deixou-se acalmar na magia tranquila do sentimento alquímico. Transfigurado, o guerreiro tornado rei, sorriu, feliz com a sua obra. Intensificou a cor azul do céu que cobre uma humanidade sem rumo e confiou no sol brilhante que refulgia em tons de paz e alegria.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Persistência

    Contemplas o jardim. O mesmo que te fez sonhar e te transportou a um tempo suspenso. Procuras-te na natureza que se agita, enquanto a tua alma permanece estranhamente tranquila. Sobressai uma flor vermelha - creio que lhe chamam sardinheira. Não é uma rosa, mas podia ser. Mas não, é uma sardinheira que se destaca e resiste à ventania. Flor habituada à intempérie, que nem o vento mais forte consegue desfolhar.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Manhã

O dia escureceu e a manhã acordou encarquilhada. Enrugada como a casca de uma árvore de milénios, alma vivida como o tempo. A bailarina, a rapariga das flores e tantas outras como elas desfilaram perante os seus olhos doridos. A leveza da dança, a alegria, o brilho dos olhos, o perfume das flores desvaneceram-se. Desapareceram numa névoa que, de tão ilusória, pareceu real. Avalanche de sonhos pela montanha abaixo, pedaços desfeitos presos nas rochas do precipício. Onde está a música que a fez dançar? Onde estão as flores que, antes de murcharem, eram vida e perfume? Ouve-se, ao longe, um violino tímido e, na neve, desponta uma florinha trémula que quer abrir-se para o mundo… O mundo, deixem-me rir, disse a manhã, irónica. O mundo! O que é o mundo? Onde está o mundo? Existirá mundo, enquanto existir maldade e sofrimento? A manhã duvida, porque as manhãs também têm dúvidas. Dúvidas tão eternas como elas.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Esperança

   Tempo e Espaço não existem.
   Construções de mentes inquietas.
   A distância é uma ilusão que, em vez de separar, aproxima.
   Quando duas almas estão em sintonia, nem ventos nem tormentos as afastam.
   Unem-nas e fortalecem-nas.
   Vamos esperar e fingir que acreditamos no tempo.
   Fazê-lo é acreditar em nós.

Em toda a parte

segunda-feira, 27 de junho de 2011

01 Riverdance - "The Best of Celtic Music"

A Bailarina

    Sem querer, a bailarina dançou. Levantou-se do canto onde se escondera e deixou-se levar pelo som celta que lhe rebuscava os sentimentos mais profundos, acordando-os e trazendo-os à tona.

    A música chamava-se “Riverdance” e trouxe-lhe à memória uma imensidão de prados verdes, colinas ondulantes, ruínas perdidas no meio da paisagem. Um som distante, duma vivência distante. O tempo em que o mundo era mundo e tudo fazia sentido. O coração tremia-lhe, mas conseguiu erguer-se, depois de mãos descuidadas a terem empurrado para o chão. Por momentos, vacilou e pensou «não vou ser capaz, nunca mais vou dançar». Doíam-lhe as pernas e o peito. As feridas invisíveis só ela as sentia – até aos ossos, até ao âmago de uma essência forte mas frágil, alegre mas triste, viva mas morta. A essência de uma mulher bailarina que não nasceu para caminhar, mas para voar, para rodopiar no etéreo, acima do sofrimento que as pedras do chão provocam na delicadeza da carne que conhece o transcendente.

    O som inesperado do violino fê-la sorrir. Pensou «tenho vontade de dançar». Levantou-se e dançou como se não houvesse mundo, como se apenas a música lhe justificasse a existência. Dançou e deixou de sentir a dor. Dançou e milhares de aves esvoaçaram em seu redor. Dançou e tornou-se éter, rodopiando até se fundir com a música e a claridade do dia.

sábado, 21 de maio de 2011

A rapariga das flores

        A rapariga das flores voltou a vê-las murchar, depois de ter as ter regado e de as ter sentido florescer dentro de si. Naquele peito cheio de luz, as flores absorveram a energia poderosa de quem acreditava que as flores florescem só porque nós assim o queremos. As flores também florescem por si e, se elas escolhem não florescer, murcham. Por isso, o ramo florido que a rapariga apertava junto ao peito murchou.
     As flores perderam a sua altivez segura e inclinaram-se de súbito, murcharam de imediato e desfizeram-se em pó. A rapariga olhou para as suas mãos. Para o seu peito. As mãos seguravam caules secos, despidos da beleza mágica e fresca da vida. No peito, vestígios de pólen e pedaços de pétalas acastanhadas, amarfanhadas, desfeitas, inúteis - mortas. Lá dentro, o vazio de novo. Canteiro sem flores, invernio, de terreno árido, abandonado pelo jardineiro.
     Quem ama flores, acredita que elas duram para sempre. Não está preparado para a escuridão, depois de ver a luz. Mas também sabe que as flores só vivem enquanto querem e porque querem. Pobre rapariga das flores! As mãos brancas amarelecidas pelo ramalhete desfeito, lavou-as com as lágrimas choradas por dentro. O coração sem as cores vibrantes das flores que acarinhou, pincelou nele memórias distantes – de outros tempos, de outras vidas – o colorido do canteiro que ainda espera… Logo que chegue a Primavera!

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Violino

Os olhos dizem tudo


Lágrimas e sorrisos

Misto de fascínio e incredulidade

A emoção de tocar o Absoluto

De planar no Infinito

Ao roçar de um beijo



Sentir a alma de alguém

É ouvir um violino

Profundo

Intenso

Que nos eleva

E sublima

No andamento irregular

Da existência

sábado, 30 de abril de 2011

Tempo Suspenso

    Dias de chuva. Dias de solidão. Mas duma solidão positiva em que nos fechamos na nossa conchinha secreta - no recanto mais escondido da nossa floresta interior - e pensamos. Pensamos. Em tudo e em nada. No que foi, no que não foi e no que poderia ter sido.


    Sentou-se no sofá preferido – aquele junto à janela que dava para o jardim – e perdeu-se na contemplação dos diversos tons de verde que sobressaíam na luz forte e acinzentada que caracteriza os dias em suspenso. Dias em que nada acontece, mas em que tudo pode acontecer. Dias fora do tempo, que lembram aberturas místicas entre eras, possibilitadoras de travessias temporais. Deixou fluir o pensamento, divertido com a ideia de uma viagem no tempo. E se ali ao fundo, entre aquele arbusto e o rochedo, houvesse, de facto, uma possibilidade de voltar atrás? Nunca lhe ocorrera visitar o futuro. Ocorria-lhe, sim, muitas vezes, revisitar o passado, revivê-lo ou dar-lhe um toque mágico que lhe permitisse seguir outro rumo. Teria sido tão simples. A mudança passaria nem que fosse por uma palavra dita no momento certo, um bilhete escrito à pressa, uma ideia luminosa que, na hora exata, permitisse resgatar todo um futuro de tropeções, de desencontros, desenredados e compreendidos à custa de tanto sofrimento e de tantas perguntas sem resposta.

    Normalmente fugia ao assunto. Aquele assunto que ainda tinha pendente consigo próprio e que nunca tinha tido coragem de encarar de frente. Sempre que o tentava, desculpava-se com o Destino, que sempre fora uma boa desculpa para as imprudências ou fraquezas humanas. O que poderia ter feito na altura? Deixar-se nas mãos do Destino ou encher-se e coragem para realizar um desejo irreprimível, que o consumia, que o devorava por dentro, mas que o assustava - tinha apenas catorze anos. Era um miúdo. Mas um miúdo que sentia como um homem. Um miúdo que amava, mas que não estava consciente do poder que uma palavra, que um gesto decidido poderia ter no futuro, no percurso de duas vidas que se perderam uma da outra e que se lamentaram desde o momento da perda, da palavra não dita, do bilhete não escrito.

    Voltava ao não-tempo, aos momentos fugidios cristalizados na memória. Os mais felizes da sua existência, alimentados e aperfeiçoados pela imaginação solitária de um miúdo que se tornou homem e procurou, em vão, o que deixara para trás. Via um jardim, flores cuidadas, árvores imponentes como um amor que se lhe fortalecia no peito. Sorrisos, muitos sorrisos. A ousadia de caminhar corajosamente de mãos dadas, os primeiros beijos tímidos, junto de um muro de pedra. Uma cumplicidade inabalável, uma tranquilidade plena, como se não houvesse mundo. Só aqueles dois seres, impregnados da inocência da descoberta dos sentimentos, da intensidade confusa de um coração que dispara com um olhar, com um toque acidental de mãos que sabem querer-se, mas não exatamente para quê. Palavras, poucas. Sentimento, muito. Palavras para quê, quando os nossos sentimentos não cabem nelas e nem suspeitamos da nossa fragilidade e da tragédia da existência humana? Uma existência talhada para o inesperado, para o bom e o mau, para a dor e a alegria, para o desespero, mas com espaço para a expetativa – para tudo o que ficou em suspenso.

    Dia perfeito. O mais perfeito de todos. O mais feliz, pela sua inocência intocável. Pelo sentimento puro sem mácula. Pelos sorrisos e pela cumplicidade de uma vida. Pelas promessas de eternidade que o não-tempo evoca, alimentando em nós a esperança do reencontro – mesmo fora do tempo, algures na nossa imensidão interior.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

Mistério

    Quem és tu afinal, que foges de mim como o diabo da cruz? O diabo na cruz nunca fez mal a ninguém, o pior é quando ele anda à solta como tu, respondeu-me ela, com o sorriso indecifrável que me confundia, mas que me fascinava. Fugiste novamente à pergunta e, pelos vistos, não vale a pena fazer-ta de novo. Não valia mesmo. Ela não me respondia. Eu bem queria que ela me desse oportunidade de lhe agarrar as mãos, de a olhar nos olhos e, como um cavalheiro de antigamente, declarar-lhe todo o amor, a paixão, o fogo que me consumia e me tirava a tranquilidade. Evadia-se-me no momento em que eu tentava dar alguma seriedade ao assunto, sei lá, compor o cenário, aproximar-me mais daquele canteiro florido, ou procurar a cascata como fundo. Sentia-me ridículo, a procurar o lugar e o momento perfeitos. Se ela me amasse, se estivéssemos em sintonia, não haveria essa necessidade. Tudo seria naturalmente… perfeito! Mas já sabem como são os homens, quando põem uma coisa na cabeça. Tem de ser como nós queremos. Para nós, o mundo dos sentimentos é um mundo arriscado. Ou se ganha ou se perde. Não há meio-termo e nós não gostamos de perder.


   Vem cá, aproxima-te… Tento chamá-la, como em miúdo fazia com o meu gato. Se o chamasse de mansinho, com um tom submisso, talvez ele se aproximasse. Às vezes, levava tempo. Chamava-o e nada. Mas, normalmente, ele caía na armadilha. Aí, agarrava-o e fazia-lhe todas as diabruras – e mais algumas –, aquelas que o afeto de um dono pelo seu animal de estimação permite. Mas ela não era um gato, nem se deixava seduzir por um bichanar gasto e ridículo, puído como um sofá que, embora resistente ao tempo, nunca tivesse tido uma utilidade justificada. Pressentindo as minhas fragilidades de homem vivido, os vícios em que o ciclo do amor nos consome, afastava-se. Orgulhosa, altiva, desafiadora, como quem me pretendia dizer que aquela cantiga já era velha, que já a tinha ouvido muitas vezes e que era preciso muito mais para a cativar, para a surpreender, para – no meu desejo – a aprisionar. Serão as falácias do amor suficientes para que me desencoraje? Não acredito. Eu sou homem e tenho instinto de caçador. Está-me nos genes, percebes? Não o posso evitar. Eu bem queria conhecer um segredo, uma poção mágica, uma fórmula, um feitiço ancestral e inquebrável que te fizesse minha para sempre! Contudo, para que isso acontecesse, era preciso que eu acreditasse. E eu não acredito. Não acredito. Não acredito nas fórmulas e não acredito no amor eterno. Acredito, sim, nas surpresas que encerras para um homem comum como eu. Acredito, sim, que o teu sorriso carrega o poder de transformar o mundo. Se é desejo? Não sei. Acredito que seja muito mais do que isso. Acredito que seja uma promessa de eternidade que me está vedada por este ceticismo torpe que, em vez de me amaciar, me incendeia aquela faceta predadora que tento esconder de ti – em vão.

     Quem és tu, que me encantas e me fazes sorrir sem razão? Quem és tu, que me tranquilizas e me fazes experimentar o sentimento de pertença a um Universo tão insondável como os enigmas do teu olhar?

domingo, 10 de abril de 2011

"Quando eu morrer..." - Pablo Neruda


Quando eu morrer quero as tuas mãos nos meus olhos:
quero que a luz e o trigo das tuas mãos amadas
passem uma vez mais sobre mim a sua frescura
que sintam a suavidade que mudou o meu destino.


Quero que vivas enquanto eu, dormindo, te espero,
quero que os teus ouvidos continuem a ouvir o vento,
que sintas o perfume do mar que ambos amamos
e continues a pisar a areia que pisamos.


Quero que tudo o que amo continue vivo
e a ti amei-te e cantei-te sobre todas as coisas,
por isso, ó florida, continua a florir,

para que alcances tudo o que o meu amor te ordena,
para que a minha sombra passeie pelos teus cabelos,
para que assim conheçam a razão do meu canto...


in, Cem Sonetos de Amor, ed. Campo da Poesia



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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Perfume

Um Black Devil de chocolate deixa-me nos lábios aquilo que imagino ser o sabor dos teus beijos. Ou será antes o travo a jasmim que deixa o chá que bebo e me preenche o vazio da alma? Enovela-se o fumo no ar e nascem poemas sem palavras, escritos para ti, projetados e transportados no éter que nos afasta, mas que, tão apertadamente, nos cola um ao outro como se esse fosse o nosso estado natural. Nascem poemas como flores selvagens e coloridas naquele canteiro árido que era o meu peito. O sol espreita por entre os caminhos turvos da floresta onde me perdi e parece guiar-me para a clareira onde me aguarda a paz e a harmonia. O cansaço dos olhos desvanece-se e, por momentos, o brilho volta, numa doce promessa de eternidade. Eu, que fui toupeira a escavar o buraco mais escuro, bicho cego com medo de enfrentar a luz, inspiro com força a brisa da manhã e preparo-me para ascender à superfície. Caminho inverso ao da escuridão. O rumo do marinheiro perdido, prestes a naufragar. Procuro a praia. O restolhar das folhas das árvores. A cumplicidade da luz que me aquece e me alenta. Pinceladas de cor animam a respiração da vida. Sigo as pistas e sei que a clareira me espera. Já não me sinto só. Uma flor despontou em mim e as suas pétalas impregnam-me a alma de perfume… É o perfume do que está para vir, do riacho secreto onde ainda correm águas cristalinas. É o sonho a romper as amarras da sombra e a abrir claraboias nos rochedos com que o meu ser se aprisionou. Chamam-lhe amor, mas eu chamo-lhe inocência primordial. O palpitar daquilo que nos transcende e nos diviniza. Amor, palavra mágica, que cria flores onde o sofrimento deixou espinhos petrificados.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Primavera

Peito florido Aves que arrulham Brisa a sussurrar Florestas de esperança Cantinho secreto de flores perfumadas Alma em festa Sorrisos nas mãos Eco lonquínquo do Inverno soturno Estrela brilhante Orvalho de mim

quarta-feira, 9 de março de 2011

O sono de Inês

Inês dorme
Nas teias da memória
Ecos de amor
Promessas de dor
Enoveladas no tempo
Insone

Verdadeira viagem

Desde muito novo que me sinto atraído pelo desconhecido e pela novidade das coisas que me rodeiam. O quotidiano parece-me sempre insuficiente e não me canso de procurar novas formas de expandir os meus horizontes. Lembro-me que comecei a ler livros aos sete anos e nunca mais parei, pois a leitura ainda hoje me dá uma sensação de voo, como se abrir as páginas de um livro fosse o mesmo que abrir as asas e voar, mergulhando na infinita liberdade dos céus. As histórias, as viagens, o apelo do longe encantam-me pela sua magia, pela possibilidade de crescimento interior que me oferecem. A leitura e as viagens são formas de alimentar e deliciar uma mente inquieta e sonhadora. Embora cada leitura seja uma viagem, a viagem dos meus sonhos não foi apenas mental. Foi física. Uma viagem a sério, de mochila às costas e mapa na mão, como os estrangeiros fazem tão regularmente. Deixei-me de manias e, em vez de convidar a minha namorada para embarcarmos num cruzeiro romântico pelas terras das Mil e Uma Noites, desafiei-a para ir comigo num interrail pelos países do leste da Europa. No início, ela não gostou muito da ideia. Disse que não se imaginava a passar quinze dias com a mesma roupa, sem tomar um banho decente e sem dormir numa cama confortável. Não se imaginava com a cara por lavar nem com o cabelo mal penteado… Na verdade, eu imaginava isso tudo com muita facilidade e disse-lhe que era pegar ou largar. Desta vez, eu queria fazer algo diferente. Aquelas viagens que toda a gente faz já não me diziam nada. Faziam-me sentir como se andasse pelos corredores dum museu, a ver objectos dentro de vitrines. Visitar monumentos enjoava-me. Eu queria qualquer coisa mais profunda: ver como vivem as pessoas, viver como elas, comer como elas, respirar o mesmo ar que elas. Para minha surpresa, ela recusou. No início, não quis acreditar, mas cedo me convenci que era melhor ir sozinho. Fui e nunca me arrependerei. Perdi a namorada, mas ganhei o amor da minha vida, uma viajante solitária que viajava no mesmo comboio que eu. Despenteada, de cara encardida pela sujidade, a dormir em qualquer lado como uma vagabunda, mas linda e genuína na sua liberdade e simplicidade. De mãos dadas, misturámo-nos com as multidões e procurámos as nossas identidades mais secretas, partilhando a alegria e o assombro da descoberta.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

estrela-guia

procuro a estrela da manhã - aquela que me viu nascer. que vaticínios que fado me fadou que caminho me traçou neste mundo tão longe de mim? lançou-me à vida ordenou-me que caminhasse mas a única bússola é a luz longínqua que atesta uma presença vigilante. vela por mim ou observa-me simplesmente? incita-me ou testa-me? quem sou eu, estrela da manhã? ser alado que recebeu na alma o teu brilho involuntário? ser mitológico expectante à espera de ganhar corpo? ser corpóreo que se alimenta das pedras duras do sonho? fito-te nas alturas e pergunto o que queres de mim. respondes com a inquietude e a saudade do longe. kaminho para ti - estrela da manhã. não sei que trilho tomar. sigo a tua luz e sinto que não estou só.