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segunda-feira, 25 de julho de 2011

Concha

   Afastou a cortina para o lado e fixou o olhar no passeio. Ninguém passava na rua. Pôs-se à escuta e pareceu-lhe ouvir passos. Escutou mais atentamente. Não escutava nada. Era imaginação. Imaginação ou desejo? Provavelmente, o desejo remanescente de esperar quem não volta, aquele último resquício de esperança que aquece um peito que já desacreditou no regresso.

   Suspirou e perdeu-se num pensamento que o guiou pelas ruas vazias de gente. Era Verão. A cidade estava ausente de si e não se ouviam os ruídos habituais. Nem passos apressados, nem lentos, nem solitários, nem acompanhados, nem cúmplices, nem distraídos. Nada. Rugia, ao longe, a buzina de um barco que anunciava a chegada à barra. Além daquele barco, ninguém mais parecia existir no mundo. Vinha-lhe à memória um verso distante de Vitorino Nemésio: «A minha casa é concha» - e era na sua concha que sentia a segurança que o contacto com o exterior ameaçava.

   Tomou uma resolução. Afastou-se da janela. Ia recolher-se na concha e esconder-se. Pegou na dor que lhe retraçara o peito e dobrou-a com cuidado, como uma manta que ainda poderia vir a ter utilidade. Fechou-a na última gaveta da cómoda, naquela onde guardava memórias e relíquias – alguns talismãs – que, ao longo do tempo, lhe foram sendo confiados – ou abandonados - por pessoas que passavam pela sua vida. Pessoas. Transeuntes. Meros passeantes que deixavam marcas sem saber. Meros peões descuidados que pisavam as flores com que, magnificamente, lhes atapetara o caminho de acesso à sua concha. Peões que nunca conhecerão o cheiro de uma flor ou o verdadeiro brilho que dela emana. Transeuntes iguais a tantos outros – de tão ocos – que perdem os contornos do rosto e se confundem com os objetos acumulados na gaveta do fundo. Não vale a pena ceder à dor latente que teima em se manifestar. Não vale a pena. Antes a solidão e o silêncio.

    Pegou no livro que tinha em cima da cama e virou a página. Como disse Saint-Exupéry, «Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção».