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terça-feira, 19 de outubro de 2010

Fuga

Comecei a morrer quando te perdi. Rouxinol feliz, de cores vibrantes e asas estendidas, fiz-me bicho. Toupeira que cava fundo na terra para fugir da luz do dia. Não quero ouvir o canto primaveril das aves. E elas calam-se. O luto do inverno soturno cobre o silêncio e eu escondo-me onde nenhum som possa chegar. É o murmúrio quieto da morte. Fico à espera. No limbo que é a vida sem ti.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

búzio

sou a concha que te acolhe teu escudo protector nas noites de tempestade perdeste a bússola as estrelas esconderam-se o astrolábio tornou-se inútil o barco à deriva no mar alto da solidão ouves as vozes procuras os rostos quem és não sabes um búzio sem casa que gela nas ondas

domingo, 19 de setembro de 2010

Canto

Regresso a casa num barco de estrelas, depois de me ter procurado nas sombras da lua. Escondi-me de mim e perdi-me, adormecida nas asas do vento norte. Segui o sinal da lira - lira fulgurante de palavras inquietas. Leve o canto que me fez retornar a mim. Água cristalina que refresca a minha cauda de sereia. Amiga do vento. Habitante da água. Filha da terra que foge do fogo e busca o longe sem fim.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Poema

pena de ave caída no chão
lágrima suspensa em solo árido
mágoa perene
vazio do tempo
sonhos perdidos sem bússola nem mapa
sorriso adiado da terra prometida
juras desfeitas em dilúvio de neve
espírito ausente
para sempre

Encontro

Encontra-te comigo debaixo daquela árvore velha como o tempo. De pés descalços na terra sinto a seiva da tua alma - a voz druídica que nos eleva à essência da vida. Amar não é mais do que o restolhar das folhas ao vento. Libertar o fogo do peito e deixá-lo planar nas asas de um cisne.

sábado, 28 de agosto de 2010

Regresso

Querida Berta:
As férias aproximam-se do fim. Vou sentir falta da paz deste recanto. Custa-me voltar ao ruído, à agitação, à turbulência da vida em sociedade. Apetecia-me ficar aqui até me fundir no pulsar da natureza. A vida é assim. Nascemos para caminhar, mas podemos sempre voltar aos lugares onde a nossa alma pertence.
Até breve, Miranda

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Carta para José meu neto:

Sim, meu neto, os meus noventa anos tornaram-me numa mulher velha e dolorida. O tempo deformou as mãos outrora brancas e delicadas com que bordei o meu enxoval e escrevi cartas de amor ao teu avô, o meu companheiro de toda a vida. Fui bela, sim, mas nunca dei à beleza o valor que muitas vezes lhe é atribuído. Descobri que ela é efémera no momento em que ouvi a minha avó dizer que também fora a mais bela rapariga do seu tempo. Gostava de ver a minha imagem reflectida na água do rio onde lavava a roupa: - o meu cabelo era castanho, encaracolado e rebelde e, quando lhe dava o vento, parecia um cavalo à solta, livre e brilhante, como os meus olhos cujo azul se perdia na contemplação da paisagem que me rodeava. O que retenho na memória é o sorriso confiante que me iluminava o rosto rosado do sol. Admiras-te com o contraste entre a vida dura que tive e a alegria que sempre me animou… A minha não foi fácil, bem o sei. Mas foi rica. Rica em tudo aquilo que considero importante: Amor! Casei e amei, pari e amei, vivi e amei. E ainda amo. Amo as pessoas e amo a Vida. Também é verdade que sofri e vi muita desgraça, mas todas essas coisas, somadas às alegrias, completam a nossa riqueza interior, tornam-nos pessoas melhores, mais conscientes da nossa condição humana. Ao longo destes noventa anos, que passaram num ápice e que me deixam confusa quando passo pelo ribeiro e vejo o meu reflexo na água, estive muitas vezes cara-a-cara com a fome e com a morte, mas também recebi a vida de braços abertos: a dos filhos, a dos netos, a dos coelhos nas coelheiras, a dos pintainhos que, atordoados, quebram a casca, a das sementes que se transformam em plantas que nos alimentam a todos nós. Não percebo nada de política, nem de economia, nem de nenhuma dessas coisas de que falam os livros e os engravatados, mas percebo da vida e do seu ciclo e, melhor ainda, sinto-a correr-me nas veias a cada inspiração. Lamentas que eu não conheça o Mundo, mas não o faças. O pouco que vi dele chegou-me bem para ver o que ele é. A certa altura, preferi deixar de o conhecer. Para mim, ser livre é poder estar onde quero e eu quero estar aqui, junto das árvores, do milho, das batatas e do feijão que ensinei a semear, dos bácoros que ajudo a criar, dos pássaros que esvoaçam à minha volta e chilreiam de manhã para me avisarem que está na hora de saudar o dia. Por isso, não me lamentes, ninguém me roubou o Mundo. O Mundo está comigo, aos meus pés e ao alcance dos meus olhos. Sim, ele vai continuar sem nós, mas lego-lhe uma herança maior do que a que contabilizaste: a continuação da humanidade, um amor incondicional que vibrará durante muito tempo, num raio de muitas léguas, e um neto que nasceu abençoado com o dom da palavra. Embora eu acredite que se pode estar em comunhão sem a necessidade de usar a palavra. O silêncio tem a magnitude do infinito. Por isso, a minha vida não foi em vão. Tenho pena de morrer, porque não poderei saudar o dia. Um dia, quando tiveres noventa anos e voltares às tuas origens, entenderás porque me sento eu “na soleira da porta, aberta para a noite estrelada e imensa”… Avó Josefa
(Catarina Teixeira)

Carta para Josefa minha avó:

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água. Viste nascer o Sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal! Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira – sete vezes engravidaste, sete vezes deste á luz. Não sabes nada do Mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja. (Contaste-me tu, ou terei sonhado que o contavas?...) Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este Mundo e não curaste de saber o que é o Mundo. Chegas ao fim da vida, e o Mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não fazia parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha vã e chão de terra batida. Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos – e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto entendo eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti – e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa, de que me não acusas – e isso ainda é pior. Mas porquê, avó, porque te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer!” É isto que eu não entendo – mas a culpa não é tua. (José Saramago, in Deste Mundo e do Outro, ed. Caminho)

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Postal Ilustrado

Querida Berta:
Eis o paraíso na Terra! Um bosque, uma cabana, o espectáculo de formas, cores, sons e cheiros que despertam os nossos sentidos e nos dizem quem somos. Estou com a natureza. Estou comigo. Estou bem. Mil beijos, Miranda

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Querida Berta: O melancólico dia de hoje e a solidão da chuva estival despertaram-me o desejo de me aconchegar na concha da memória. O meu jardim de outono manifesta-se nestes dias, a relembrar-me que a queda da folha se aproxima a passos largos. O recolhimento, o silêncio, a vontade de criar tornam-se urgentes em mim. As palavras sobem das profundezas do poço em que mergulho quando durmo e afloram à superfície, vibrantes, cheias de vida, cristalinas e poderosas como um canteiro de flores coloridas e singelas. Quando é assim, minha querida Berta, sei que tenho de me sentar e escrever-te. Escrevo-te da minha janela. O vento agita as folhagens e eu sinto-me acompanhada. O meu amigo vento. Aquele que sopra e traz renovação. Apetece respirar este ar fresco, rebelde, que parece querer contar-nos tudo, atropelando-se a si próprio, incoerente na busca de um discurso coerente. Os meus pensamentos entram em sintonia com este discurso cheio de significados. Dançam com ele e celebram a surpresa de uma visita inesperada. Que bom, chegou o vento!, parecem dizer, desejando convidá­-lo para um chá na varanda. Confesso que sentia falta desta paz que hoje me inunda. Como se o tempo tivesse parado para mim, esse tempo que nunca se detém, para que eu pudesse respirar sem me sentir obrigada a fazê-lo. O outono manifesta-se em mim. Sinto-o apossar-se do meu peito e espalhar-se pelo corpo todo. Não temas por mim, eu não tenho medo, não estou assustada. Sinto uma quase felicidade por me poder aproximar daquilo que só o tempo traz. Cada dia a mais é um dia a menos, só isso me deixa uma leve tristeza. O outono também tem flores e frutos e os tons vermelhos e amarelos nas folhas. O outono é um convento de silêncio e de paz, o recolhimento da natureza, a preparação para o inverno, a germinação de uma nova vida. Liberto-me das futilidades e das mesquinhices do quotidiano. Torno-me mais eu e mais tranquila. O mundo tem ruído a mais. Prefiro o cheiro da terra molhada, da vida confidente, da divindade que estende a mão ao meu ser mais puro. É aqui que me encontro, é aqui que vivo. O Joaquim ensinou-me muito com a sua partida. Desprendeu-se da mãe árvore com a dignidade de uma folha que cumpriu o seu destino. Também eu quero ser assim. Tenho saudades tuas, das nossas conversas. Quando quiseres fugir um pouco ao ruído do mundo, sabes onde te espero, sempre, de braços abertos. Mil beijos, Miranda * à Ana Salomé

terça-feira, 29 de junho de 2010

"Os anos ensinam muitas coisas que os dias desconhecem." (autor desconhecido, citado por José Saramago)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Despedida (a José Saramago)

As últimas flores da Primavera atapetaram a ponte que atravessaste. As aves celebraram o teu regresso e as árvores estenderam os ramos para te receberem. Voltaste à Terra, à origem que cantaste e sempre foi parte do teu presente. Digno, sereno, confiante na Imortalidade como em todos os dias da tua viagem. Deste voz aos pequenos, à Terra cansada e oprimida revoltada com uma História de páginas mal contadas. Trouxeste-nos alimento - as palavras de Esperança - deste-nos ânimo e brandiste a tua pena pela justiça, sem perderes o olhar de menino. Vai agora e descansa, Guerreiro das palavras que não tínhamos coragem de dizer.