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sábado, 30 de abril de 2011

Tempo Suspenso

    Dias de chuva. Dias de solidão. Mas duma solidão positiva em que nos fechamos na nossa conchinha secreta - no recanto mais escondido da nossa floresta interior - e pensamos. Pensamos. Em tudo e em nada. No que foi, no que não foi e no que poderia ter sido.


    Sentou-se no sofá preferido – aquele junto à janela que dava para o jardim – e perdeu-se na contemplação dos diversos tons de verde que sobressaíam na luz forte e acinzentada que caracteriza os dias em suspenso. Dias em que nada acontece, mas em que tudo pode acontecer. Dias fora do tempo, que lembram aberturas místicas entre eras, possibilitadoras de travessias temporais. Deixou fluir o pensamento, divertido com a ideia de uma viagem no tempo. E se ali ao fundo, entre aquele arbusto e o rochedo, houvesse, de facto, uma possibilidade de voltar atrás? Nunca lhe ocorrera visitar o futuro. Ocorria-lhe, sim, muitas vezes, revisitar o passado, revivê-lo ou dar-lhe um toque mágico que lhe permitisse seguir outro rumo. Teria sido tão simples. A mudança passaria nem que fosse por uma palavra dita no momento certo, um bilhete escrito à pressa, uma ideia luminosa que, na hora exata, permitisse resgatar todo um futuro de tropeções, de desencontros, desenredados e compreendidos à custa de tanto sofrimento e de tantas perguntas sem resposta.

    Normalmente fugia ao assunto. Aquele assunto que ainda tinha pendente consigo próprio e que nunca tinha tido coragem de encarar de frente. Sempre que o tentava, desculpava-se com o Destino, que sempre fora uma boa desculpa para as imprudências ou fraquezas humanas. O que poderia ter feito na altura? Deixar-se nas mãos do Destino ou encher-se e coragem para realizar um desejo irreprimível, que o consumia, que o devorava por dentro, mas que o assustava - tinha apenas catorze anos. Era um miúdo. Mas um miúdo que sentia como um homem. Um miúdo que amava, mas que não estava consciente do poder que uma palavra, que um gesto decidido poderia ter no futuro, no percurso de duas vidas que se perderam uma da outra e que se lamentaram desde o momento da perda, da palavra não dita, do bilhete não escrito.

    Voltava ao não-tempo, aos momentos fugidios cristalizados na memória. Os mais felizes da sua existência, alimentados e aperfeiçoados pela imaginação solitária de um miúdo que se tornou homem e procurou, em vão, o que deixara para trás. Via um jardim, flores cuidadas, árvores imponentes como um amor que se lhe fortalecia no peito. Sorrisos, muitos sorrisos. A ousadia de caminhar corajosamente de mãos dadas, os primeiros beijos tímidos, junto de um muro de pedra. Uma cumplicidade inabalável, uma tranquilidade plena, como se não houvesse mundo. Só aqueles dois seres, impregnados da inocência da descoberta dos sentimentos, da intensidade confusa de um coração que dispara com um olhar, com um toque acidental de mãos que sabem querer-se, mas não exatamente para quê. Palavras, poucas. Sentimento, muito. Palavras para quê, quando os nossos sentimentos não cabem nelas e nem suspeitamos da nossa fragilidade e da tragédia da existência humana? Uma existência talhada para o inesperado, para o bom e o mau, para a dor e a alegria, para o desespero, mas com espaço para a expetativa – para tudo o que ficou em suspenso.

    Dia perfeito. O mais perfeito de todos. O mais feliz, pela sua inocência intocável. Pelo sentimento puro sem mácula. Pelos sorrisos e pela cumplicidade de uma vida. Pelas promessas de eternidade que o não-tempo evoca, alimentando em nós a esperança do reencontro – mesmo fora do tempo, algures na nossa imensidão interior.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

terça-feira, 19 de abril de 2011

Mistério

    Quem és tu afinal, que foges de mim como o diabo da cruz? O diabo na cruz nunca fez mal a ninguém, o pior é quando ele anda à solta como tu, respondeu-me ela, com o sorriso indecifrável que me confundia, mas que me fascinava. Fugiste novamente à pergunta e, pelos vistos, não vale a pena fazer-ta de novo. Não valia mesmo. Ela não me respondia. Eu bem queria que ela me desse oportunidade de lhe agarrar as mãos, de a olhar nos olhos e, como um cavalheiro de antigamente, declarar-lhe todo o amor, a paixão, o fogo que me consumia e me tirava a tranquilidade. Evadia-se-me no momento em que eu tentava dar alguma seriedade ao assunto, sei lá, compor o cenário, aproximar-me mais daquele canteiro florido, ou procurar a cascata como fundo. Sentia-me ridículo, a procurar o lugar e o momento perfeitos. Se ela me amasse, se estivéssemos em sintonia, não haveria essa necessidade. Tudo seria naturalmente… perfeito! Mas já sabem como são os homens, quando põem uma coisa na cabeça. Tem de ser como nós queremos. Para nós, o mundo dos sentimentos é um mundo arriscado. Ou se ganha ou se perde. Não há meio-termo e nós não gostamos de perder.


   Vem cá, aproxima-te… Tento chamá-la, como em miúdo fazia com o meu gato. Se o chamasse de mansinho, com um tom submisso, talvez ele se aproximasse. Às vezes, levava tempo. Chamava-o e nada. Mas, normalmente, ele caía na armadilha. Aí, agarrava-o e fazia-lhe todas as diabruras – e mais algumas –, aquelas que o afeto de um dono pelo seu animal de estimação permite. Mas ela não era um gato, nem se deixava seduzir por um bichanar gasto e ridículo, puído como um sofá que, embora resistente ao tempo, nunca tivesse tido uma utilidade justificada. Pressentindo as minhas fragilidades de homem vivido, os vícios em que o ciclo do amor nos consome, afastava-se. Orgulhosa, altiva, desafiadora, como quem me pretendia dizer que aquela cantiga já era velha, que já a tinha ouvido muitas vezes e que era preciso muito mais para a cativar, para a surpreender, para – no meu desejo – a aprisionar. Serão as falácias do amor suficientes para que me desencoraje? Não acredito. Eu sou homem e tenho instinto de caçador. Está-me nos genes, percebes? Não o posso evitar. Eu bem queria conhecer um segredo, uma poção mágica, uma fórmula, um feitiço ancestral e inquebrável que te fizesse minha para sempre! Contudo, para que isso acontecesse, era preciso que eu acreditasse. E eu não acredito. Não acredito. Não acredito nas fórmulas e não acredito no amor eterno. Acredito, sim, nas surpresas que encerras para um homem comum como eu. Acredito, sim, que o teu sorriso carrega o poder de transformar o mundo. Se é desejo? Não sei. Acredito que seja muito mais do que isso. Acredito que seja uma promessa de eternidade que me está vedada por este ceticismo torpe que, em vez de me amaciar, me incendeia aquela faceta predadora que tento esconder de ti – em vão.

     Quem és tu, que me encantas e me fazes sorrir sem razão? Quem és tu, que me tranquilizas e me fazes experimentar o sentimento de pertença a um Universo tão insondável como os enigmas do teu olhar?

domingo, 10 de abril de 2011

"Quando eu morrer..." - Pablo Neruda


Quando eu morrer quero as tuas mãos nos meus olhos:
quero que a luz e o trigo das tuas mãos amadas
passem uma vez mais sobre mim a sua frescura
que sintam a suavidade que mudou o meu destino.


Quero que vivas enquanto eu, dormindo, te espero,
quero que os teus ouvidos continuem a ouvir o vento,
que sintas o perfume do mar que ambos amamos
e continues a pisar a areia que pisamos.


Quero que tudo o que amo continue vivo
e a ti amei-te e cantei-te sobre todas as coisas,
por isso, ó florida, continua a florir,

para que alcances tudo o que o meu amor te ordena,
para que a minha sombra passeie pelos teus cabelos,
para que assim conheçam a razão do meu canto...


in, Cem Sonetos de Amor, ed. Campo da Poesia



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sexta-feira, 8 de abril de 2011

Perfume

Um Black Devil de chocolate deixa-me nos lábios aquilo que imagino ser o sabor dos teus beijos. Ou será antes o travo a jasmim que deixa o chá que bebo e me preenche o vazio da alma? Enovela-se o fumo no ar e nascem poemas sem palavras, escritos para ti, projetados e transportados no éter que nos afasta, mas que, tão apertadamente, nos cola um ao outro como se esse fosse o nosso estado natural. Nascem poemas como flores selvagens e coloridas naquele canteiro árido que era o meu peito. O sol espreita por entre os caminhos turvos da floresta onde me perdi e parece guiar-me para a clareira onde me aguarda a paz e a harmonia. O cansaço dos olhos desvanece-se e, por momentos, o brilho volta, numa doce promessa de eternidade. Eu, que fui toupeira a escavar o buraco mais escuro, bicho cego com medo de enfrentar a luz, inspiro com força a brisa da manhã e preparo-me para ascender à superfície. Caminho inverso ao da escuridão. O rumo do marinheiro perdido, prestes a naufragar. Procuro a praia. O restolhar das folhas das árvores. A cumplicidade da luz que me aquece e me alenta. Pinceladas de cor animam a respiração da vida. Sigo as pistas e sei que a clareira me espera. Já não me sinto só. Uma flor despontou em mim e as suas pétalas impregnam-me a alma de perfume… É o perfume do que está para vir, do riacho secreto onde ainda correm águas cristalinas. É o sonho a romper as amarras da sombra e a abrir claraboias nos rochedos com que o meu ser se aprisionou. Chamam-lhe amor, mas eu chamo-lhe inocência primordial. O palpitar daquilo que nos transcende e nos diviniza. Amor, palavra mágica, que cria flores onde o sofrimento deixou espinhos petrificados.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Primavera

Peito florido Aves que arrulham Brisa a sussurrar Florestas de esperança Cantinho secreto de flores perfumadas Alma em festa Sorrisos nas mãos Eco lonquínquo do Inverno soturno Estrela brilhante Orvalho de mim