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quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

A Avó e eu

    A minha infância intercalava entre duas realidades: a ausência da avó e a vinda da avó, sempre tão desejada e por quanto mais tempo melhor. A avó era muito bonita e vivia em Lisboa. Eu, logo que aprendi a escrever, enviava-lhe cartas e postais ilustrados com regularidade, para a manter a par das novidades que iam acontecendo nesta minha aldeia onde nada acontecia e onde eu passava o tempo a sonhar acordada com as saídas que me permitiriam ver o mundo para lá da “estrada nova”.

   A visita da avó empolgava-me e enchia-me de alegria. Era alegre, bem-disposta, contava-me tantas coisas – do mundo e das pessoas e de nós. Tinha os olhos brilhantes, embora, por vezes, tristes - mas era uma tristeza que logo a sua vivacidade disfarçava. Quando chegava “o dia”, eu não saía da porta ou da janela. Preferia mesmo estar à porta quando a avistasse, pois, assim, só teria de correr estrada acima, ao seu encontro de braços abertos e o coração cheio de luz. Gostava de a ir receber, ajudá-la com os sacos, embeber-me naquele sorriso tão desejado… Surgia sempre com a postura de uma rainha. Sem excessos. Sem luxo. Mas radiosa. Bem penteada, com os ganchinhos todos no sítio, de brincos, com roupa ajustada à medida e bem conjugada. Ainda hoje me lembro de uma das roupas que mais usava: saia de xadrez verde e preto, com colete a condizer, blusa branca de gola e punhos rendados e uma pregadeira prateada com um brilhante verde-escuro. A minha avó era uma senhora! Uns passos atrás, mais devagarinho e menos energicamente, vinha o avô – um cavalheiro, alto, magro e direito, de chapéu à Fernando Pessoa e fato inteiro. Ela, vibrante. Ele, calado. Mas um casal inesquecível!

   Penso que, por vezes, eu me tornava um pouco maçadora… Mas tentem entender: eu tinha fome da avó. Não que sentisse despertar em mim instintos canibais menos próprios, mas porque a avó tinha muito a ver comigo e preenchia o meu mundo. Ela era tudo aquilo que eu não tinha no quotidiano: desde a infalível tablete de chocolate comprada na estação de metro, àquela companhia estimulante e nunca suficiente. Fazia crochet, enquanto eu desenhava, lia ou escrevia. Falava-me da cidade, dos monumentos, das pracetas e dos jardins, e da forma como as pessoas eram educadas e polidas, contava-me episódios da infância do meu pai e do meu padrinho, pautada pela pobreza, mas, em contrapartida, pela elevação de valores, por uma visão que transcendia o mundinho a que eu, por nascimento, parecia estar limitada. Falava-me de livros e prometia que, assim que eu “tivesse idade”, me deixaria ler todos aqueles que tinha bem cuidados e arrumados na pequena estante da sala. Entretanto, enquanto não os podia ler, eu pedia-lhe que me fosse contando as histórias e, desta forma, ia imaginando os pormenores da intriga e a descrição das personagens. Ensinava-me a ser uma “senhora” e corrigia os meus comportamentos de desajeitada criança aldeã, criada na liberdade de uma bicicleta e na intimidade dos livros. Sempre com uma postura pedagógica, paciente e construtiva. Contava-me os seus planos de futuro para mim – sendo o dela já tão curto… Dava-me a mão e, ao ouvido, dizia-me que me via muito bonita e feliz – juro que ainda sinto a sua mão na minha. Uma mão suave, mas firme e acolhedora, que me tranquilizava e me abria a porta para o mundo que só ela via, mas que me permitia entrever.

    Olhando para trás, penso que a minha solidão começou, quando a avó definhou como a flor que murcha perante os nossos olhos incrédulos. Eu tinha catorze anos. A sua partida deixou o meu mundo mais vazio e, a pouco e pouco, senti necessidade de a procurar em mim para me reencontrar. Não são raras as vezes em que a sinto próxima, a segredar-me ao ouvido e a dar-me a mão, quase impercetivelmente, a inspirar-me confiança e a recordar-me os sonhos que via em mim.

    Conforme avanço na idade, mais me lembro da minha avó, da falta que a sua presença física me faz. Precisava daquele sorriso, daquele caráter destemido e seguro que, apesar de todas as dificuldades enfrentadas, nunca deixou esmorecer. Ela nunca me deixaria sozinha. Ouvir-me-ia, limpar-me-ia as lágrimas e far-me-ia erguer a cabeça e acreditar que, um dia, tudo seria diferente – para melhor… Hoje sei que a pessoa que sou procura honrar a memória desta mulher inolvidável que, das estrelas, me sorri quando me sinto só. É o calor da sua mão que me dá alento para continuar a procurar, nos livros, as respostas que não encontro no mundo. É a sua postura de rainha sem trono que me faz acreditar que a ambição desmedida não me fará chegar aonde tenho de chegar. Para sermos felizes, basta-nos sermos nós, sem nunca deixarmos de olhar o céu e prestar atenção ao toque discreto que nos afaga a mão e nos limpa as lágrimas.