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quarta-feira, 18 de setembro de 2013

         Daqui partiram as naus e aqui se ouviram os vaticínios de um Velho que ficou na praia. Na opinião de uns, tinha uma perspetiva pessimista e agoirenta da grande empresa do peito ilustre lusitano, na opinião de outros, era a voz do saber experiente, a visão realista construída pelos anos. As naus partiram, voltaram ou, simplesmente, naufragaram e permaneceram quietas, envoltas em lodo e plantas marinhas, casa de peixes e albergue de corais. Tesouros desconhecidos repousam nas profundezas e sopram, ao rio, memórias de tempestades e bonanças, resíduos de um sonho que putrifica nas águas silenciadas, outrora palco de um país que não foi.
         O murmúrio fresco das águas tornou-se um sussurro abafado, quem sabe o vestígio das lágrimas choradas pelas mães, pelos filhos, pelas noivas por casar, ou, talvez, pelo Gigante horrendo e amargo, castigado pela impassível tortura eterna de uma Tétis insensível ao lamento intemporal do bem perdido. As naus perderam-se e, com elas, o chamamento das ondas. Pelos recantos da cidade, ainda ecoam as palavras do Velho, mais pesadas que as maldições do Gigante que, essas, foram caindo no esquecimento e, se alguém delas se recorda, é por terem ficado registadas na História Trágico-Marítima. O preço a pagar pela ousadia de superar a condição humana, o sofrimento que resgata e legitima o desejo que o homem tem de se divinizar.

         Quem apurar os sentidos pode perceber, na cidade suspensa, o diálogo caleidoscópico que a neblina entabula com a memória. Escorrem, pelas pedras, silvos de espadas, lamentos de dor, tilintar de ouro, suspiros de morte ou de saudade, reflexos de lua cheia, marulhos de ondas aradas por marinheiros garbosos, imbuídos do desejo de fama e do heroísmo inspirado. É esta a cidade suspensa, a mesma em que Ulisses aportou, a que fora fadada para um fado maior, abençoada por Deus e escolhida pelos deuses. Cidade-mãe de imortais heróis. Cidade fantasma de um sonho definhado, impávida sepultura de cadáveres adiados, acompanhada pela noite húmida de silêncios mal iluminados, vazia de transeuntes nesta hora de jantar em que as famílias, pretensamente felizes, se reúnem à mesa das suas possibilidades, ausentes do passado, esquecidas do futuro, adormecidas no presente. (...)