Daqui partiram as naus e aqui se
ouviram os vaticínios de um Velho que ficou na praia. Na opinião de uns, tinha
uma perspetiva pessimista e agoirenta da grande empresa do peito ilustre lusitano, na opinião de outros, era a voz do saber
experiente, a visão realista construída pelos anos. As naus partiram, voltaram
ou, simplesmente, naufragaram e permaneceram quietas, envoltas em lodo e
plantas marinhas, casa de peixes e albergue de corais. Tesouros desconhecidos
repousam nas profundezas e sopram, ao rio, memórias de tempestades e bonanças,
resíduos de um sonho que putrifica nas águas silenciadas, outrora palco de um
país que não foi.
O murmúrio fresco das águas tornou-se
um sussurro abafado, quem sabe o vestígio das lágrimas choradas pelas mães,
pelos filhos, pelas noivas por casar, ou, talvez, pelo Gigante horrendo e
amargo, castigado pela impassível tortura eterna de uma Tétis insensível ao
lamento intemporal do bem perdido. As naus perderam-se e, com elas, o
chamamento das ondas. Pelos recantos da cidade, ainda ecoam as palavras do
Velho, mais pesadas que as maldições do Gigante que, essas, foram caindo no
esquecimento e, se alguém delas se recorda, é por terem ficado registadas na
História Trágico-Marítima. O preço a pagar pela ousadia de superar a condição
humana, o sofrimento que resgata e legitima o desejo que o homem tem de se
divinizar.
Quem apurar os sentidos pode perceber,
na cidade suspensa, o diálogo caleidoscópico que a neblina entabula com a
memória. Escorrem, pelas pedras, silvos de espadas, lamentos de dor, tilintar
de ouro, suspiros de morte ou de saudade, reflexos de lua cheia, marulhos de
ondas aradas por marinheiros garbosos, imbuídos do desejo de fama e do heroísmo
inspirado. É esta a cidade suspensa, a mesma em que Ulisses aportou, a que fora
fadada para um fado maior, abençoada por Deus e escolhida pelos deuses.
Cidade-mãe de imortais heróis. Cidade fantasma de um sonho definhado, impávida
sepultura de cadáveres adiados, acompanhada pela noite húmida de silêncios mal
iluminados, vazia de transeuntes nesta hora de jantar em que as famílias,
pretensamente felizes, se reúnem à mesa das suas possibilidades, ausentes do
passado, esquecidas do futuro, adormecidas no presente. (...)