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quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Querida Berta: O melancólico dia de hoje e a solidão da chuva estival despertaram-me o desejo de me aconchegar na concha da memória. O meu jardim de outono manifesta-se nestes dias, a relembrar-me que a queda da folha se aproxima a passos largos. O recolhimento, o silêncio, a vontade de criar tornam-se urgentes em mim. As palavras sobem das profundezas do poço em que mergulho quando durmo e afloram à superfície, vibrantes, cheias de vida, cristalinas e poderosas como um canteiro de flores coloridas e singelas. Quando é assim, minha querida Berta, sei que tenho de me sentar e escrever-te. Escrevo-te da minha janela. O vento agita as folhagens e eu sinto-me acompanhada. O meu amigo vento. Aquele que sopra e traz renovação. Apetece respirar este ar fresco, rebelde, que parece querer contar-nos tudo, atropelando-se a si próprio, incoerente na busca de um discurso coerente. Os meus pensamentos entram em sintonia com este discurso cheio de significados. Dançam com ele e celebram a surpresa de uma visita inesperada. Que bom, chegou o vento!, parecem dizer, desejando convidá­-lo para um chá na varanda. Confesso que sentia falta desta paz que hoje me inunda. Como se o tempo tivesse parado para mim, esse tempo que nunca se detém, para que eu pudesse respirar sem me sentir obrigada a fazê-lo. O outono manifesta-se em mim. Sinto-o apossar-se do meu peito e espalhar-se pelo corpo todo. Não temas por mim, eu não tenho medo, não estou assustada. Sinto uma quase felicidade por me poder aproximar daquilo que só o tempo traz. Cada dia a mais é um dia a menos, só isso me deixa uma leve tristeza. O outono também tem flores e frutos e os tons vermelhos e amarelos nas folhas. O outono é um convento de silêncio e de paz, o recolhimento da natureza, a preparação para o inverno, a germinação de uma nova vida. Liberto-me das futilidades e das mesquinhices do quotidiano. Torno-me mais eu e mais tranquila. O mundo tem ruído a mais. Prefiro o cheiro da terra molhada, da vida confidente, da divindade que estende a mão ao meu ser mais puro. É aqui que me encontro, é aqui que vivo. O Joaquim ensinou-me muito com a sua partida. Desprendeu-se da mãe árvore com a dignidade de uma folha que cumpriu o seu destino. Também eu quero ser assim. Tenho saudades tuas, das nossas conversas. Quando quiseres fugir um pouco ao ruído do mundo, sabes onde te espero, sempre, de braços abertos. Mil beijos, Miranda * à Ana Salomé